sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Pensamentos da velha Vreska durante esperar

A fila do Posto de Subtração andava rápida. Alguns se angustiavam com a espera, outros com a velocidade com a qual se aproximavam da sala de entrevista (restava tão pouco tempo para quem ainda não estava firme em sua decisão...). Para Vreska, a única angústia era que houvesse uma fila. Filas, para ela, sempre foram coisa de galinhas, gente não deveria andar assim. Ela pensava isso espera após espera, a vida inteira, ainda que nunca tivesse assistido a uma criação de galinhas, onde perceberia facilmente que as aves não são tão dóceis e ordenadas quanto seu valor nutritivo sugere. Suas pernas doiam, ela gostaria de sentar.

É um tanto constrangedor abaixar-se numa fila, então Vreska apenas curvou ainda mais suas costas já desleixadas, exercitando contorcionismos para massagear-se as batatas. Será que durante a entrevista, ela poderia sentar? A Subtração, após isso, ainda levaria muito tempo? Ela orava para que não. Malditas pernas!

Antigamente, distribuíam senhas e chamavam os voluntários para a entrevista por números, um a um, enquanto esses esperavam em grandes bancos presos na parede. Qualquer demora, no entanto, tinha se provado danosa ao processo de Subtração, aumentando o número de desistências tardias; foi necessário simplificá-lo ao máximo para garantir o cumprimento das metas anuais. A velha conta quatro à sua frente, e imagina quem dentre eles desistirá. Talvez algum desista. Ela, não.

Esse primeiro rapaz,é estranho que esteja aqui. Ainda é muito moço, nenhum defeito ou fraqueza aparente, o dote não deve valer quase nada. Ou será que ele está reprovando os anos técnicos? Vreska sempre achou que era preciso ser um perfeito parvo para reprovar os anos técnicos, então é até justo que o dote pela subtração seja alto. Quando ela ou sua irmã não mostravam dedicação aos estudos - que nunca pareceram tão difíceis assim - o pai sempre ralhava, "Quanto melhor! Mando vocês para Subtração por repetência, é o maior dote do programa!". Essa ameaça, ela até se ria, nunca assustou ninguém.

O segundo homem era sombrio e carrancudo. Olhou para o risinho disfarçado que Vreska dedicava as suas memórias com todo o desprezo que cabe num único rosto humano (dos grandes; de humanos de rosto pequeno, precisariam-se uns dois); em seguida, voltou seu julgamento para o jovem à sua frente, que tremia, suava, afrouxava a camisa, como que se preparando para um desafio. Parecia querer dizer, - "bah, a subtração é voluntária, caso não esteja contente, simplesmente vá embora!", mas os homens sombrios e carrancudos nunca dizem o que aparentam querer, bastam-se nas suas caretas. O jovem, que era o primeiro da fila, engoliu mais uma vez seu temor em seco, releu pela centésima vez as duas placas, uma a cada lado da porta da sala de entrevistas. A porta se abriu, ele suspirou, entrou. Os três à frente de Vreska deram um passo adiante; ela, também. E todas as pessoas atrás dela. Não contou quantas eram.

Era raro ver alguém tão idoso quanto o senhor carrancudo que agora ocupava o primeiro lugar da fila (mesmo que as pernas de Vreska doessem muito mais do que as dele; ela ficava impaciente; se todos fossem embora, poderia, finalmente se sentar). A velha se perguntava por que ele demorara tanto para resolver se subtrair; provavelmente, só por despeito. Deveria ter resistido até o último minuto para poder incomodar aos seus parentes ao máximo; com certeza ele os detesta ainda mais do que aos seus companheiros de fila. Em seu posto, encara diretamente a porta, não os cartazes. Ele já sabe o que dizem e qual procedimento escolheu (nisso Vreska se identifica com o rabugento).

Atrás daquele corvo empoleirado, vinha um pardalzinho. Uma criança maltrapilha, provavelmente órfã, limpava o ranho do nariz na manga desgrenhada da camisa, que não via água e sabão há meses. Não conseguiria ler as informações nas placas; talvez se demorasse na entrevista, perguntando tudo uma vez e mais outra e de novo de outro jeito, até entender e escolher o procedimento que aprazesse seus caprichos infantis - idéia da qual as pernas mais que adultas se ressentiam. Fato, muitos na fila se irritavam com a presença de crianças, justamente por causa dessa demora que elas significam - não poderia haver outra fila, só para elas? O velho não era dado a essas perguntas, nem teria de esperar: a porta se abriu, ele entrou. Os dois à frente de Vreska deram um passo adiante; ela, também. E todas as pessoas atrás dela. Talvez algum desista. Ela, não. Embora suas pernas queiram.

O menino lembrava a velha Vreska de seus netos. Ela gostaria de ter dito a eles que antigamente, quando ela era criança, as coisas não eram assim, as pessoas eram diferentes. "No meu tempo¹, qualquer um teria ficado indignado de ver uma criança na fila da subtração", ela diria. Mas seria mentira. Desde muito antes de ela ser criança, as coisas não mudavam; a sua avó contava que, na infância, ouvia da tataravó Proshenka que no passado as coisas não eram assim, que as pessoas tinham outros valores - mas essa era uma história muito indireta para capturar a atenção dos meninos, e a imaginação de Vreska não conseguia vislumbrar qualquer possibilidade de diferença.

Por um momento, Vreska concluiu que só duas pessoas eram diferentes entre si no mundo inteiro: seu pai e sua filha. Ele: calculava, ano após ano, qual seria o valor do dote da mãe. Assim que a soma começou a depreciar, passou a pedir insistentemente que a avó de Vreska se apressasse na sua subtração, pelo bem da família. Fez o mesmo com a esposa; dois dias após seu aniversário de cinqüenta e cinco anos, deixou planilhas calculando a melhor idade de subtração para as duas filhas e dirigiu-se ao Posto (a irmã de Vreska não teve paciência para esperar tanto tempo, mas isso não vem ao caso). Já Petra, a filha, jamais falava sobre a subtração. Vreska não se lembra de ter lhe dado modos, mas percebeu que havia muito que a jovem deixava de fazer "por educação".

A porta se abriu, o menino entrou. O homem seguinte tomou o primeiro lugar da fila, olhava para as placas, mais por distração, por saber que essa entrevista tendia à demora. A placa à direita era dourada e trazia o lema, "Subtrair-se é Doar-se", tão antigo que ninguém lembrava quando havia sido escrito; a da esquerda era de latão polido, e trazia os procedimentos e respectivos custos. Alguns se angustiavam com a espera, outros com a velocidade com a qual se aproximavam da sala de entrevista. Para a velha Vreska, a única angústia era que houvesse uma fila. Suas pernas tremulavam o cansaço.

Este homem, imediatamente à frente de Vreska, tinha os cabelos grisalhos, um tanto grandes e desgrenhados. Aparentava ter pouco menos de cinquenta anos; ainda era jovem o suficiente para procurar um cargo na educação ou na burocracia, portanto o dote deveria ser mínimo. Vreska também não entenderia por que ele estava ali tão precocemente, se não tivesse ouvido horas atrás, enquanto a fila ainda estava lá fora, uma mulher atrás de si cochichar para outra que este era um oficial reformado da Subtração Compulsória. Sobre eles, havia um consenso: quando antes forem, melhor - e que escolhessem a parede, ou a lâmina, que deviam doer mais.

Vreska não gostava da idéia da lâmina, que era o procedimento mais barato. Para ela, além das filas, também eram as lâminas coisa para galinhas - mesmo que a posição horizontal durante o procedimento fosse oferecer um alívio para suas pernas. Já tinha escolhido pela corda, era aceitável, não muito mais cara. (Não que ela pudesse aproveitar o dinheiro com qualquer outra coisa, mas Vreska, como todo mundo, não gostava de desperdício). Ela inclusive vez ou outra resmungava - como ainda havia a câmara e a injeção na ficha? Métodos dispendiosos e desnecessários. Por algum motivo, havia quem preferisse. Teria pensado na irmã se soubesse².

"Orgulho" é uma palavra que quase não tem mais significado, exceto quando estamos diante de um oficial da subtração compulsória. A velha ficou contente em saber que ele entraria antes dela. Resolveu que seria bom que ele gritasse. Ela esperaria. Só para garantir, resolveu que deveria demorar um pouco na entrevista, talvez fingir ter medo, talvez perguntar detalhes dos métodos (como se ela já não tivesse estudado todos, várias vezes, pela vida inteira). Tomara que na sala houvesse lugar para sentar. Assim ela agüentaria enrolar mais. A porta se abriu, o oficial entrou. Vreska deu um passo adiante. Ferrugem corroia a maçaneta, esse posto não era muito bem conservado.

Foi de um significado estranho ter um último desejo. E se ele não gritasse, como a velha saberia que já era hora? Pior, se o grito fosse horrível e aflitivo, e a fizesse desistir? Mordeu os lábios. Por que logo agora, em sua vida inteira, tinha inventado de imaginar? Quem não tem imaginação, não tem medo. Agora, ela experimentava um pouco. Será que ela deveria ir embora? Não, respirou fundo, não seria para tanto. A imaginação de Vreska não conseguia vislumbrar qualquer possibilidade de diferença.

As pernas doíam muito, ela não poderia mais ficar em pé. Queria ir para casa, queria descansar, seu corpo a mandava sair dali e voltar amanhã (às sextas-feiras, as filas são menores). Não tinha guardado nenhuma comida em casa, não achou que fosse precisar. Ela teria que visitar sua filha e pedir vegetais para a sopa. Talvez ainda houvesse um pão sobre a mesa. Dormir, repousar as pernas, esperar só uma noite mais. Gherta³ não teve paciência para esperar tanto tempo, mas isso não vem ao caso.

Quando alguém desiste da subtração, por onde sai? Ela que estava ali há horas, não viu ninguém voltar. Será que todos tinham realmente ido? O velho, o menino, o jovem, o oficial e todas as pessoas antes deles? Não contou quantas eram. Os que voltam, já houve ocasiões onde ela conheceu alguns, nunca contam muitos detalhes. Costumam dizer que não sabem se o momento em que se está diante da porta é o que passa mais rápido ou mais devagar. Vreska notou que também não sabia. Talvez fossem os dois. Talvez algum desista. Ela, não.

A porta se abriu, ela entrou. Demoraria um pouco, talvez para ouvir o grito, mas não deixaria isso abalar sua decisão. Nem mais suas pernas. No entanto, o furacão que crescia dentro de si desafiava a calma com a qual Vreska cumpria suas tarefas e metas. Perceberia facilmente que as aves não são tão dóceis e ordenadas quanto seu valor nutritivo sugere.

¹ Faça-se notar que Vreska vive uma situação onde a expressão "no meu tempo" não é apenas um cacoete de velhos; o tempo de ontem pertencia a ela, era seu de direito. O de agora, não. Ainda que ambos fossem o mesmo.

² Tudo aquilo que ela não pensou, no entanto, seria em si um conto e tanto.

³ A irmã.

Um comentário:

Dr. Voldo disse...

belo texto, muito boa a idéia e bem escrito