domingo, 7 de dezembro de 2008

Rituais de matrimônio entre os Bur'häkkn

A cerimônia tradicional parte do compartilhamento de um sentimento em comum, que toca a todos os participantes: a raiva incontrolável que as famílias sentem uma da outra por estarem retirando-lhe um jovem do ninho. Costumeiramente, a família da noiva entra no templo primeiro, batendo pratos e panelas, gritando que não haverá casamento. Os irmãos e primos percorrem o lugar em busca do sacerdote e o expulsam a pontapés, para garantir que ele não roube sua protegida em nome de Deus.

Do lado de fora, a família do noivo espera com os ingredientes do bolo. Ao verem o sacerdote sair escorraçado do templo, vaiam e arremessam ovos e varinha contra o pobre, que não tem escolha que não continuar correndo até onde a vista alcança. O pai do noivo conduz a comitiva ao altar. Lá, as duas mães começam espalhafatoso embate oral, responsabilizando-se pela tragédia que se abate. A exemplo delas, logo todos os presentes se engalfinham com violência. Por causa desse momento complexo da liturgia, é de praxe que a família mais numerosa, por gentileza, convide apenas o número proporcional de parentes para manter a luta equilibrada. De qualquer forma, os parentes excessivos sempre aparecem, o que faz de alguns casamentos verdadeiros massacres.

Aproveitando a distração da luta, os noivos correm para a portinhola de saída do recanto dos religiosos, onde, a esse momento, um sacerdote assistente deve estar escondido. Ele rapidamente abençoa a união para que o casal possa fugir em paz. As famílias continuam o embate por horas, até darem por falta dos jovens noivos. Nesse momento fazem as pazes e voltam sua raiva para a destruição dos aposentos do templo e das imagens de adoração. O incêndio do altar marca o encerramento da cerimônia e a consolidação de uma união estável e duradoura.

Os Bur'häkkn apresentam os menores índices de desquites em toda a história daquele país, em números relativos e absolutos.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Mito da Criação para os Bur'häkkn

Conforme o velho da cabana costumava contar

"Então, onde antes havia Deus e mais nada, por que antes ainda não havia nada, havia Deus e o Sol, que estava ali ninguém sabe dizer porquê.
E Deus, vendo a luz do sol, começou a pensar e a ter idéias, muitas idéias.
O Sol continuava a brilhar.
Deus, não tendo mais nada a mão, arrancou seus dentes e com eles fez a Lua e colocou-a a girar.
Quanto mais a Lua girava, mais o Sol brilhava, mais idéias Deus tinha.
Mas não havia mais nada para fazer com as idéias.
Deus então chorou por vinte e oito dias sem parar, até que a Lua voltasse para onde ele estava.
Com a luz da Lua na noite, Deus viu a água de suas lágrimas, viu o Oceano, e lá mergulhou suas mãos.
E, com a água do Oceano, o sal do Oceano, a luz do Sol e da Lua, foi então que Deus começou a criar."

E é por isso que toda a vida, todos os profetas e todos os amores até hoje vem do mar. E por isso que quando os dentes das crianças caem, nós os lançamos ao céu, para que Deus possa usá-los em sua boca. Assim nós agradecemos pelo mar, assim nós agradecemos pela lua.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Boas conversas que se pode ter sentado sobre cascos

Na cidade ninguém queria mais saber dele não. Ainda era o tempo em que as pessoas apenas não se dirigiam a gente naquela condição, mas foi o suficiente para que ele se dedicasse ao ostracismo entre as tartarugas da pedreira abandonada, onde morou por muitos anos.
Logo que chegou, foi recebido com festa; os moradores da pedreira, que há décadas não viam um ser humano, uivaram a noite toda, alegres de terem com quem conversar. Gostou muito delas. As tartarugas lhe mordiscavam a carne e ele sentia cócegas e vontade de nunca mais dormir. Sentava-se sobre o dorso de uma ou outra, não como quem cavalga, mas como quem espera numa sala de estar, tomando chá e contando a última de sua tia distante incapaz de evitar escândalos. Esses animais, percebeu, oferecem vantajoso conforto de estarem sempre paradoes e em movimento ao mesmo tempo, tudo tão estável e equilibrado quanto o mundo, mais até, porque sobre os seus cascos não ocorrem, como na crosta da terra, vulcões e terremotos.
Os répteis chamavam-se Hermes Marana, Zargot, Cecília e outras coisas assim. Cantavam muito, em seus uivos. Sua canção favorita foi ensinada por Orongo, que aprendeu com as baleias quando morava no mar. O homem considerava o som insuportável, mas preferia dizer a elas que estava gostando, o que, vendo-se bem, também não chega a ser uma mentira.
Um dia amanheceu com febre e muita dor. Quando pediu socorro, notou que as tartarugas não dispunham da devida organização para atendê-lo. Então disse para Orongo "você que é o mais sabido, será meu médico, para me curar"; "e como eu serei um médico?". Explicou. Orongo deveria dizer e escrever coisas que ele não entendesse muito bem para que alguém lhe desse um remédio. Quem? Cecília seria a farmacêutica. Mas onde fica a farmácia? "Do outro lado da rua". Decidiu-se que Zargot seria a rua, Meredith a avenida que cruzava lá em cima, Hermes o mendigo de frente para o prédio abandonado.
Quando viu, as tartarugas já tinham eleito Fillipe presidente e planejavam o golpe levante militar que instituiria o corrente escritório interino. Foi muito surpreendente quando elas decidiram proibir o uivo em público. Não pareciam mais tartarugas. Orongo finalmente tirou seu diploma médico e diagnosticou o homem. Insanidade pérfida e incurável, exílio! Deixe o País da Pedreira imediatamente ou sofra as conseqüências.
As tartarugas formaram um corredor e ladravam e xingavam para que dirigisse-se ao ostracismo; segundo imposto em sua vida. Para onde o homem iria agora? Recusava-se ao oeste, onde o sol poente projetaria sua sombra para que as tartarugas pisoteassem e se mijassem sobre sua imagem. Do leste tinha vindo; ao sul e ao norte não imaginava conseguir vencer as escarpadas da pedreira.
Se não os homens nem as tartarugas, quem ainda mais morderia sua carne? As tartarugas cercaram-no como lobos. Orongo rugiu. Rugiu de novo. Talvez fosse melhor assim. Antes a execução que o ostracismo, não? Depois do silêncio,puseram-se todos às gargalhadas - há muito que as tartarugas observam os homens com complacência hmorada. Puseram fim a farsa toda.

O homem não sabia se as tartarugas eram a compreensão que não recebera de seus pares o os pares que não recebera de sua compreensão, mas continuou a habitar a pedreira, se não feliz, bem razoavelmente satisfeito, até morrer bem velhinho do que deveria ser uma tendinite.

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Pensamentos da velha Vreska durante esperar

A fila do Posto de Subtração andava rápida. Alguns se angustiavam com a espera, outros com a velocidade com a qual se aproximavam da sala de entrevista (restava tão pouco tempo para quem ainda não estava firme em sua decisão...). Para Vreska, a única angústia era que houvesse uma fila. Filas, para ela, sempre foram coisa de galinhas, gente não deveria andar assim. Ela pensava isso espera após espera, a vida inteira, ainda que nunca tivesse assistido a uma criação de galinhas, onde perceberia facilmente que as aves não são tão dóceis e ordenadas quanto seu valor nutritivo sugere. Suas pernas doiam, ela gostaria de sentar.

É um tanto constrangedor abaixar-se numa fila, então Vreska apenas curvou ainda mais suas costas já desleixadas, exercitando contorcionismos para massagear-se as batatas. Será que durante a entrevista, ela poderia sentar? A Subtração, após isso, ainda levaria muito tempo? Ela orava para que não. Malditas pernas!

Antigamente, distribuíam senhas e chamavam os voluntários para a entrevista por números, um a um, enquanto esses esperavam em grandes bancos presos na parede. Qualquer demora, no entanto, tinha se provado danosa ao processo de Subtração, aumentando o número de desistências tardias; foi necessário simplificá-lo ao máximo para garantir o cumprimento das metas anuais. A velha conta quatro à sua frente, e imagina quem dentre eles desistirá. Talvez algum desista. Ela, não.

Esse primeiro rapaz,é estranho que esteja aqui. Ainda é muito moço, nenhum defeito ou fraqueza aparente, o dote não deve valer quase nada. Ou será que ele está reprovando os anos técnicos? Vreska sempre achou que era preciso ser um perfeito parvo para reprovar os anos técnicos, então é até justo que o dote pela subtração seja alto. Quando ela ou sua irmã não mostravam dedicação aos estudos - que nunca pareceram tão difíceis assim - o pai sempre ralhava, "Quanto melhor! Mando vocês para Subtração por repetência, é o maior dote do programa!". Essa ameaça, ela até se ria, nunca assustou ninguém.

O segundo homem era sombrio e carrancudo. Olhou para o risinho disfarçado que Vreska dedicava as suas memórias com todo o desprezo que cabe num único rosto humano (dos grandes; de humanos de rosto pequeno, precisariam-se uns dois); em seguida, voltou seu julgamento para o jovem à sua frente, que tremia, suava, afrouxava a camisa, como que se preparando para um desafio. Parecia querer dizer, - "bah, a subtração é voluntária, caso não esteja contente, simplesmente vá embora!", mas os homens sombrios e carrancudos nunca dizem o que aparentam querer, bastam-se nas suas caretas. O jovem, que era o primeiro da fila, engoliu mais uma vez seu temor em seco, releu pela centésima vez as duas placas, uma a cada lado da porta da sala de entrevistas. A porta se abriu, ele suspirou, entrou. Os três à frente de Vreska deram um passo adiante; ela, também. E todas as pessoas atrás dela. Não contou quantas eram.

Era raro ver alguém tão idoso quanto o senhor carrancudo que agora ocupava o primeiro lugar da fila (mesmo que as pernas de Vreska doessem muito mais do que as dele; ela ficava impaciente; se todos fossem embora, poderia, finalmente se sentar). A velha se perguntava por que ele demorara tanto para resolver se subtrair; provavelmente, só por despeito. Deveria ter resistido até o último minuto para poder incomodar aos seus parentes ao máximo; com certeza ele os detesta ainda mais do que aos seus companheiros de fila. Em seu posto, encara diretamente a porta, não os cartazes. Ele já sabe o que dizem e qual procedimento escolheu (nisso Vreska se identifica com o rabugento).

Atrás daquele corvo empoleirado, vinha um pardalzinho. Uma criança maltrapilha, provavelmente órfã, limpava o ranho do nariz na manga desgrenhada da camisa, que não via água e sabão há meses. Não conseguiria ler as informações nas placas; talvez se demorasse na entrevista, perguntando tudo uma vez e mais outra e de novo de outro jeito, até entender e escolher o procedimento que aprazesse seus caprichos infantis - idéia da qual as pernas mais que adultas se ressentiam. Fato, muitos na fila se irritavam com a presença de crianças, justamente por causa dessa demora que elas significam - não poderia haver outra fila, só para elas? O velho não era dado a essas perguntas, nem teria de esperar: a porta se abriu, ele entrou. Os dois à frente de Vreska deram um passo adiante; ela, também. E todas as pessoas atrás dela. Talvez algum desista. Ela, não. Embora suas pernas queiram.

O menino lembrava a velha Vreska de seus netos. Ela gostaria de ter dito a eles que antigamente, quando ela era criança, as coisas não eram assim, as pessoas eram diferentes. "No meu tempo¹, qualquer um teria ficado indignado de ver uma criança na fila da subtração", ela diria. Mas seria mentira. Desde muito antes de ela ser criança, as coisas não mudavam; a sua avó contava que, na infância, ouvia da tataravó Proshenka que no passado as coisas não eram assim, que as pessoas tinham outros valores - mas essa era uma história muito indireta para capturar a atenção dos meninos, e a imaginação de Vreska não conseguia vislumbrar qualquer possibilidade de diferença.

Por um momento, Vreska concluiu que só duas pessoas eram diferentes entre si no mundo inteiro: seu pai e sua filha. Ele: calculava, ano após ano, qual seria o valor do dote da mãe. Assim que a soma começou a depreciar, passou a pedir insistentemente que a avó de Vreska se apressasse na sua subtração, pelo bem da família. Fez o mesmo com a esposa; dois dias após seu aniversário de cinqüenta e cinco anos, deixou planilhas calculando a melhor idade de subtração para as duas filhas e dirigiu-se ao Posto (a irmã de Vreska não teve paciência para esperar tanto tempo, mas isso não vem ao caso). Já Petra, a filha, jamais falava sobre a subtração. Vreska não se lembra de ter lhe dado modos, mas percebeu que havia muito que a jovem deixava de fazer "por educação".

A porta se abriu, o menino entrou. O homem seguinte tomou o primeiro lugar da fila, olhava para as placas, mais por distração, por saber que essa entrevista tendia à demora. A placa à direita era dourada e trazia o lema, "Subtrair-se é Doar-se", tão antigo que ninguém lembrava quando havia sido escrito; a da esquerda era de latão polido, e trazia os procedimentos e respectivos custos. Alguns se angustiavam com a espera, outros com a velocidade com a qual se aproximavam da sala de entrevista. Para a velha Vreska, a única angústia era que houvesse uma fila. Suas pernas tremulavam o cansaço.

Este homem, imediatamente à frente de Vreska, tinha os cabelos grisalhos, um tanto grandes e desgrenhados. Aparentava ter pouco menos de cinquenta anos; ainda era jovem o suficiente para procurar um cargo na educação ou na burocracia, portanto o dote deveria ser mínimo. Vreska também não entenderia por que ele estava ali tão precocemente, se não tivesse ouvido horas atrás, enquanto a fila ainda estava lá fora, uma mulher atrás de si cochichar para outra que este era um oficial reformado da Subtração Compulsória. Sobre eles, havia um consenso: quando antes forem, melhor - e que escolhessem a parede, ou a lâmina, que deviam doer mais.

Vreska não gostava da idéia da lâmina, que era o procedimento mais barato. Para ela, além das filas, também eram as lâminas coisa para galinhas - mesmo que a posição horizontal durante o procedimento fosse oferecer um alívio para suas pernas. Já tinha escolhido pela corda, era aceitável, não muito mais cara. (Não que ela pudesse aproveitar o dinheiro com qualquer outra coisa, mas Vreska, como todo mundo, não gostava de desperdício). Ela inclusive vez ou outra resmungava - como ainda havia a câmara e a injeção na ficha? Métodos dispendiosos e desnecessários. Por algum motivo, havia quem preferisse. Teria pensado na irmã se soubesse².

"Orgulho" é uma palavra que quase não tem mais significado, exceto quando estamos diante de um oficial da subtração compulsória. A velha ficou contente em saber que ele entraria antes dela. Resolveu que seria bom que ele gritasse. Ela esperaria. Só para garantir, resolveu que deveria demorar um pouco na entrevista, talvez fingir ter medo, talvez perguntar detalhes dos métodos (como se ela já não tivesse estudado todos, várias vezes, pela vida inteira). Tomara que na sala houvesse lugar para sentar. Assim ela agüentaria enrolar mais. A porta se abriu, o oficial entrou. Vreska deu um passo adiante. Ferrugem corroia a maçaneta, esse posto não era muito bem conservado.

Foi de um significado estranho ter um último desejo. E se ele não gritasse, como a velha saberia que já era hora? Pior, se o grito fosse horrível e aflitivo, e a fizesse desistir? Mordeu os lábios. Por que logo agora, em sua vida inteira, tinha inventado de imaginar? Quem não tem imaginação, não tem medo. Agora, ela experimentava um pouco. Será que ela deveria ir embora? Não, respirou fundo, não seria para tanto. A imaginação de Vreska não conseguia vislumbrar qualquer possibilidade de diferença.

As pernas doíam muito, ela não poderia mais ficar em pé. Queria ir para casa, queria descansar, seu corpo a mandava sair dali e voltar amanhã (às sextas-feiras, as filas são menores). Não tinha guardado nenhuma comida em casa, não achou que fosse precisar. Ela teria que visitar sua filha e pedir vegetais para a sopa. Talvez ainda houvesse um pão sobre a mesa. Dormir, repousar as pernas, esperar só uma noite mais. Gherta³ não teve paciência para esperar tanto tempo, mas isso não vem ao caso.

Quando alguém desiste da subtração, por onde sai? Ela que estava ali há horas, não viu ninguém voltar. Será que todos tinham realmente ido? O velho, o menino, o jovem, o oficial e todas as pessoas antes deles? Não contou quantas eram. Os que voltam, já houve ocasiões onde ela conheceu alguns, nunca contam muitos detalhes. Costumam dizer que não sabem se o momento em que se está diante da porta é o que passa mais rápido ou mais devagar. Vreska notou que também não sabia. Talvez fossem os dois. Talvez algum desista. Ela, não.

A porta se abriu, ela entrou. Demoraria um pouco, talvez para ouvir o grito, mas não deixaria isso abalar sua decisão. Nem mais suas pernas. No entanto, o furacão que crescia dentro de si desafiava a calma com a qual Vreska cumpria suas tarefas e metas. Perceberia facilmente que as aves não são tão dóceis e ordenadas quanto seu valor nutritivo sugere.

¹ Faça-se notar que Vreska vive uma situação onde a expressão "no meu tempo" não é apenas um cacoete de velhos; o tempo de ontem pertencia a ela, era seu de direito. O de agora, não. Ainda que ambos fossem o mesmo.

² Tudo aquilo que ela não pensou, no entanto, seria em si um conto e tanto.

³ A irmã.

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Considerações sobre Aquele País para leigos

Os historiadores discordam sobre o momento a partir do qual Aquele País poderia ser considerado como tal. É verdade que mesmo após o violento processo de unificação, suas populações nunca se sentiram unidas. Também é verdade que já muito antes disso, a história de todas as regiões parecia ser sempre igual. A língua que se denominou comum nenhum falante ou linguista sabe dizer de onde veio. Pesquisas apontam origens eslavas, árabes e toltecas, entre outras.

A identidade racial se perdera antes da unificação, com as migrações em massa nas primeiras corridas industriais. Via de regra, os habitantes tem as cabeças redondas ou ovaladas. As orelhas são caracterizadas pela existência de uma ligação entre o lóbulo e o restante do rosto, mesmo que não seja raro observar quem não a tenha. Tanto para os ocidentais quanto para os orientais, os moradores daquele país parecem envelhecer em ritmo comum. Normalmente, os mais velhos são aqueles que nasceram há mais tempo, seguidos pelos mais novos, que são aqueles que vieram depois. Embora sejam poucos os momentos da Sua História em que isso constitua uma lei ou tabu (momentos esses que pareceram intermináveis, se vistos de dentro), desde sempre e sabe-se lá até quando é mais comum que os mais velhos morram após um tempo. Por isso, década a década, os mais jovens costumam tornar-se mais velhos e trazem outros, de algum lugar que não se recordam, para tomarem seu lugar. Esse costume tem paralelos em todo o mundo, mas lá ora ocorre de maneira peculiar.

Não existe palavra para opressão na maioria das línguas nativas, mas um cidadão pode conhecer até quarenta formas diferentes de dizer farinha. Tanto o trigo quanto o arroz crescem fertemente pelas vastas paragens, enquanto o leite é extraído em regiões montanhosas. No dialeto da região da capital, considerado mais puro, a palavra para cidadão é a mesma que para solitário e as palavras fronteira e morte se pronunciam iguais, apesar da grafia diferenciada. O radical de todas essas palavras, usado isoladamente, significa fim, ou fim do meu tormento, ou amanhã, dependendo do contexto. Nas outras regiões, as semelhanças ainda são observadas, mas com diferenças e sutilezas.

Nenhum governante dAquele país, em nenhum dos milhares de sistemas de governo que já se tentaram por lá, jamais morreu feliz. Porém é dito que todos, graças a tudo ou apesar de tudo, sempre tiveram o sono tranquilo.